Rodas de Leitura: Dom Casmurro

1 de junho de 2022

Rodas de Leitura: Dom Casmurro

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Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual Dom Orione, em Curitiba, no dia 01 de julho de 2022.

Um romance de inquisição

Machado, por décadas, foi embranquecido pela história. Foto: Reprodução.

Por Jonatan Silva

Que Dom Casmurro, livro que integra o projeto Rodas de Leitura: discussões sobre masculinidade na literatura, talvez, seja a mais importante obra literária brasileira, já não é mais novidade. Até mesmo a mais famosa suposição de traição de nossa literatura também já não tem nada de novo. Pensar que Bentinho era um homem paranoico, ciumento, pouco confiável e amargurado ao extremo não guarda ineditismo algum. E que o protagonista-narrador, o mesmo Bentinho, retrata Capitu, sua paixão de infância e futura esposa, com crueldade histórica parece tão batido quanto discutir o tal adultério. O que, então, faz com que um romance publicado em 1899, dez anos depois da proclamação da República, seja ainda tão relevante para os nossos dias? Por que as memórias de Bento Santiago e as tensões de Dom Casmurro ainda reverberam?

A resposta mais óbvia, quem sabe, seja a de que Machado de Assis (1839 – 1908) soube transformar as lacunas de um país alquebrado, com suas raízes escravocratas e colonizadas tão vivas, que chega a ser impossível não testemunhar o espelhamento dos tempos. O Brasil ainda é um país racista, mesmo a maioria da população se declarando não branca, e jamais deixou de ser colonizado por outras culturas – basta ver o consumo de filmes, séries, músicas, etc. Machado, ele próprio, por décadas, teve a sua cor negada: mulato, descendia de escravos alforriados, conviveu por cinquenta anos com a legalidade do tráfico e o comércio negreiro. Esses elementos não são a espinha dorsal de sua literatura, mas está presente em detalhes, como os escravos que a família de Bentinho aluga ou vende, por exemplo. De lá para cá, o que mudou em nosso país?

Machado foi um sujeito de sorte. Apesar de suas origens humildes, foi a contra a corrente de sua época, aprendendo a ler e a escrever, trabalhando em tipografias e jornais. Mais tarde, seria a figura central da cena literária brasileira ao vadear os mares da prosa realista, inaugurada por Gustave Flaubert (1821 – 1880) e seu polêmico Madame Bovary (1856), ao publicar Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), e que trazia um narrador defunto. Naquele momento, o escritor brasileiro fincava a sua bandeira no panteão dos heróis literários, honra que seus livros românticos, mesmo que bons, não haviam de lhe dar – ou não com tamanha grandeza. Enquanto o romantismo buscava uma identidade tipicamente nacional por meio da idealização – primeiro da figura indígena, depois do amor inalcançável e, por último, pelo olhar social –, o realismo tentava descrever “a vida como ela é”. Não à toa, Emma Bovary era uma mulher adúltera – algo impensável para a época –, Brás Cubas era irônico e galhofeiro e Bentinho se mostrava como, tal qual já foi dito, paranoico. Porém, muito mais que essas únicas camas, o realismo queria mostrar seus personagens com as complexidades humanas e as variações de personalidade.

E Machado – que, ao lado de outros intelectuais de sua época, fundaria a Academia Brasileira de Letras, instituição que nutre amores e ódios entre a massa da literatura – foi o responsável pelo gesto inaugural do movimento realista no Brasil.

Inquérito

Voltando a Dom Casmurro, Bentinho faz parte de uma linhagem de homens falhos criada por Machado e que chega à sua forma mais alinhavada com Brás Cubas, depois evoluindo para o marido de Capitu e o Coronel Aires, de Memorial de Aires (1908). Em suas Memórias, Cubas, esse fidalgo tão machadiano, é um conquistador barato, algo bem diferente de Bentinho, porém, é igualmente misógino. Se ao longo de todo o romance, Bento Santiago perfila Capitu como uma mulher manipuladora – e veremos isso adiante em maior grau –, Brás Cubas vê as mulheres como objetos. Não por acaso, uma de suas frases mais famosas é um comentário depreciativo sobre Marcela: “bonita, mas coxa”. A moça tinha toda a beleza que aquele homem poderia desejar, entretanto, mancava, e isso já lhe era suficiente para que fosse sumariamente descartada.

Com Bentinho, Machado vai além. Capitu não era coxa, porém, o narrador a descreve como um monstro moral, alguém incapaz de um único ato verdadeiro. Desde criança, Bentinho a vê como dissimulada – a cigana oblíqua, como disse José Dias –, capaz de maquinar seus gestos e emoções, fingindo pensamentos e reações. Já velho e sozinho, Bento Santiago cria uma narrativa de ilusão, como se tudo o que a Capitu havia feito era somente uma armadilha para casar com ele sair da pobreza e, por isso, ajudava nas maquinações para impedir que o vizinho fosse para o Seminário de São Pedro, onde deveria ser coroado padre, cumprindo a promessa que a mãe, Dona Glória, tinha dispensado a Deus. Nem José Dias, o agregado da família Santiago, e tampouco Capitu conseguem fazer com que o garoto não cumpra a sua missão, que logo é abortada. Apesar de breve, a passagem pelo seminário traz à narrativa outro personagem importantíssimo: Escobar, curitibano que acaba por se tornar o melhor amigo de Bento.

Se Bento se casa com Capitu, Escobar escolhe Sancha, a companheira de infância de Capitu,  e os casais se transformam em parentes por afeição. O ponto de virada de Dom Casmurro se dá, justamente, no velório de Escobar, que morre afogado. Na visão de Bento, sua esposa chorava mais que a viúva e ali começa a jornada infindável do maior inquérito literário brasileiro. Ali estão as pistas de outros momentos em que Capitu e Escobar teriam deixado seu romance transparecer, como na cena em que Bento se enciuma dos braços expostos da esposa. A partir daquele momento, Ezequiel, cujo nome é uma homenagem ao rapaz de Curitiba, passa, ao menos aos olhos do pai, a ter traços do amigo traidor. Não demora para que mãe e filho sejam despachados para a Suíça. Capitu morre na Europa, e Ezequiel, em terras tupiniquins. Bentinho, que já não o aceitava como filho, não esconde o alívio que aquela morte lhe trouxe.

Como se vê, Dom Casmurro é um romance de tribunal, em que Bento Santiago, como sagaz advogado de formação, é vítima, procurador e juiz, uma tríade que tenta mascarar, apresentando, com clareza, somente a primeira parte. E é, exatamente, por seu caráter acusatório que a discussão sobre o suposto adultério está ultrapassada.

Masculinidade e memória

Todo o engenho de Dom Casmurro está centrado na figura masculina. Somente na moderna e iluminada Paris de Flaubert seria possível traçar uma história de uma mulher adúltera. No Brasil republicano, em que o sentimento ainda era dúbio acerca do novo sistema de governo, tal empreitada era impossível. Isso é um reflexo da sociedade e da época. Naquele momento, as mulheres estavam quase que completamente alijadas da vida social e da sua representação na política. Lembremos que as mulheres só foram autorizadas a votar em 1932, durante o governo de Getúlio Vargas, que chegou ao poder dois anos antes por meio de um golpe de estado. (A própria instauração da República não passou de um golpe militar.)

Bentinho, se fosse hoje, seria um homem tóxico, mas não é só isso: ele é cria, como dito antes, de todo um sistema que permitia que situações como essa se perpetuassem. Pensemos: quem são as autoras brasileiras do século XIX e que podemos chamar de clássicas? Parece haver uma lacuna, correto? E essa fenda, essa erosão social, é fruto de um modelo patriarcal que escondia as figuras femininas da produção cultural da época – e de nossos tempos também. Não são poucos os casos de escritoras que precisaram publicar seus livros sob pseudônimos masculinos ou esconder suas identidades. Mary Ann Evans (1819 – 1880) publicou com o nome de George Eliot. Não pense, porém, que isso é “coisa do passado”: Harper Lee (1926 – 2016), autora do aclamado O Sol é para todos (1960), que jamais assinava com seu primeiro nome, Nelle; J. k. Rowling, que escreveu a saga de Harry Potter, usava somente as suas iniciais para que não houvesse resistência pelo fato de ser mulher. 

Machado, que nada tinha de Bentinho, pelo contrário, era um marido devoto de sua esposa – até se conta que sua saúde decaiu muito depois que Carolina Augusta Novais (1835 – 1904) faleceu –, conseguiu emoldurar com maestria a sinuca social de Brasil que entraria há pouco no século XX. O professor, pesquisador e ensaísta Roberto Schwarz, em um dos seus textos mais importantes, escreveu sobre a descrição da crueldade histórica na obra de Machado. Segundo  Schwarz, o escritor fluminense escancarava a situação, não só terrível, mas sistêmica do país, ou seja, a crise como um projeto. A crise, não somente sob o olhar econômico, e sim das instituições, que acabam por subjugar as populações simples ou marginalizadas.

Em uma análise mais profunda sobre toda a produção de Machado de Assis, Luís Augusto Fischer, professor e escritor, observa que não existe na prosa machadiana espaço direto para as classes subalternas, o que não quer dizer que não estejam nas suas obras. Na prática, a sua ficção denuncia as mazelas e as relações de poder ao ironizar as elites. Quer uma prova? O que é Bentinho se não um homem mimado, incapaz de lidar com as suas frustrações? O mesmo vale para Brás Cubas e o Coronel Aires. Os três, por coincidência que só a mente de um autor do calibre de Machado pode criar, são memorialistas.

Nenhum vive, exatamente, o seu presente. Brás Cubas, por motivos óbvios, é claro. Em alguma medida, são todos machos feridos, acometidos de uma vaidade pura e genuína de quem detém o poder. Sob o verniz de uma literatura de altíssimo nível, para usar os superlativos de José Dias, Dom Casmurro esconde uma das críticas mais ferinas já produzidas e, infelizmente, parece que não perderá tão cedo a sua atualidade.

Pontos importantes para entender Dom Casmurro

  • Romance de tribunal
  • Vilanização da mulher
  • A modernidade brasileira
  • Romance realista

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