Rodas de Leitura: O Vampiro de Curitiba

22 de abril de 2022

Rodas de Leitura: O Vampiro de Curitiba

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Este episódio foi gravado com os estudantes do Colégio Estadual do Paraná, em Curitiba, no dia 09 de junho de 2022.

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Dalton Trevisan e o malandro de Curitiba

Croqui urbano realizado pelo artista visual e escritor Fabiano Vianna e que ilustra a casa em que Dalton Trevisan por quase 60 anos. Imagem: Fabiano Vianna/Colaboração.

Por Jonatan Silva

Dalton Trevisan é o tipo de escritor que vive da sua mitologia particular. Esquivo, arredio, invasor e perturbador. Age no silêncio por meio de suas neuroses e preferências mais íntimas. Boa parte dessa reputação do autor curitibano vem de sua obra mais imponente, O Vampiro de Curitiba, publicada pela primeira vez em 1965 e que rendeu o apelido que o acompanha há quase seis décadas. Nelsinho, o verdadeiro vampiro das araucárias, nada tem de Dalton, e também tudo tem. Essa simbiose só é possível porque Nelsinho é fruto da ficção e da fabulação. “Um herói literário é a soma de não sei quantas pessoas”, disse Dalton, em 1968, numa das raras entrevistas que concedeu. “O Nelsinho, o Delicado, é certo que sou eu. Mas eu sou também Gigi, Naná e Fifi. Eu sou João e sou Maria”. Como diria Franz Kafka: “eu sou minhas histórias”.

Criador e criatura se misturam e habitam o mesmo universo: a Curitiba mítica, uma cidade que existe nas cenas que não estão nos cartões-postais e nas fotografias, o contraponto da capital ecológica, da Cidade Sorriso e do lixo que não é lixo. A Curitiba de Dalton Trevisan não está escondida, ao contrário, é tão visível que não a enxergamos: está nas praças com as pessoas em situação de rua, na violência doméstica na periferia, na burocracia das repartições públicas e na solidão da metrópole.

Nelsinho, o herói cafajeste, é fruto desse ambiente que não soube ser moderno. Quando O Vampiro de Curitiba chegou às livrarias, o Brasil recebia mais um golpe do Golpe de 1964: o Ato Institucional n°2 (AI-2), que “constitucionalizava” a Ditadura Militar. Na contramão do país, que vivia um período de estanca no desenvolvimento, Curitiba passava por um momento de modernização e consolidação da cidade metrópole, deixando para trás a pecha de província. E Trevisan usaria Nelsinho, uma espécie de malandro curitibano, para explorar as contradições entre o moderno e o decadente, a grande cidade e a cidade interiorana.

Na década de 1960, Curitiba vivia o ápice da sua Cinelândia, a região que hoje chamamos de Boca Maldita e cuja foz é a Praça Osório. Naquelas quadras estavam os principais cinemas da cidade e, à exceção do circo, praticamente o único programa dos curitibanos na época. Nelsinho era um habituée desses espaços. Escravo da paixão e da libertinagem, estava sempre à espreita das suas vítimas entre uma sessão e outra. E aqueles foram também os anos da explosão do comércio em Curitiba: não à toa, o Vampiro assedia uma vendedora da região central e a atendente de um botequim.

Dalton Trevisan exuma em O Vampiro de Curitiba toda a perversão que alimentava, e ainda alimenta, os homens. Nelsinho é o arquétipo do sujeito do seu tempo: a sua masculinidade está diretamente ligada à sua performance com Don Juan profissional. As tentativas de sedução são sempre um teatro a preencher a sua virilidade. A aliciamento daquelas mulheres – a professora, a vendedora, a moça encurralada no canto, etc. – é o retrato do absurdo e da desconstrução da figura feminina. A obsessão com que desenha a ironia de um homem colocado do avesso pelo desejo mórbido da “conquista” à força fez de Dalton Trevisan um narrador complexo.

Cada conto d’O Vampiro de Curitiba é, para usar uma expressão daltoniana, uma faca no coração. Nelsinho é um personagem fascinante, justamente, pela sua repugnância, pelo exercício da sua masculinidade e do erotismo dilacerante – e que estão presentes em livros A Polaquinha, Novelas nada exemplares, A Gorda do Tiki Bar e tantos outros. Como Quincas Borba, o personagem de Machado de Assis, que julga uma mulher por suas “deficiências” – “bonita, mas coxa”, ele diz sobre Marcela –, Nelsinho provoca um sorriso amarelo, que expõe as fraquezas do leitor e a hipocrisia da sociedade.

Erotismo e cidade

O Vampiro de Curitiba é a investigação do espaço urbano, da construção da nova cidade. O Brasil deixava de ser um país rural e as cidades se tornavam superlotadas, escancarando a desigualdade social e a violência. Enquanto a América Latina vivia o chamado boom, em que predominava o realismo mágico de Gabriel García Márquez, Carlos Fuetes, Julio Cortázar, Juan Rulfo e Mario Vargas Llosa, os escritores brasileiros mergulhavam no realismo urbano e no erotismo que emanava dessas relações de poder.

Trevisan, assim como João Antônio – que chamava seus personagens do submundo de “merdunchos” – e Rubem Fonseca – que soube narrar como poucos as dicotomias de um país dividido –, cria suas narrativas a partir da realidade escarrada. “O que eu não aprendi nos livros, aprendi na rua”, comentou ao escritor Nelson de Oliveira, em 2004. Quarenta anos antes, quando questionado sobre onde pinça a inspiração para suas histórias, o Vampiro é certeiro: “Em notícias policiais, frases no ar, bulas de remédio, pequenos anúncios, bilhetes de suicidas, o meu e o teu fantasma no sótão, confidências de amigos, a leitura dos clássicos etc. O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, eu adivinho – e, com sorte, você advinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo”.

Nelsinho é o completo oposto dos personagens da literatura regionalista, que tinha como expoentes Guimarães Rosa, José Lins do Rego e Graciliano Ramos – os três declaradas influências do autor curitibano –, mas é também o inverso das mulheres de Clarice Lispector. Nesse jogo de espelhos, Dalton Trevisan dá luz a um personagem singular, repleto de falhas e manias, perversões e desconexões, que retrata a complexidade do ser humano, em suas mais diversas dimensões, e que faz possível um exame crítico e minucioso para a desconstrução das masculinidades tóxicas e das erosões entre gêneros.

Pontos importantes para entender O Vampiro de Curitiba

  • O minimalismo na escrita de Dalton Trevisan
  • O retrato do espaço urbano de Curitiba
  • O erotismo e o conceito de masculinidade da época
  • A ironia, o absurdo e o humor nas ações de Nelsinho
  • A figura da mulher como sensual e inocente

 

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Saiba mais

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Daltonismo

Para conhecer melhor a obra de Dalton Trevisan, e também a sua fascinante figura, recomendamos o documentário Daltonismo, dirigido por Célio Yano. O projeto conta a participação de importantes nomes da literatura e do jornalismo paranaenses como Cristovão Tezza, Luiz Geraldo Mazza, Fábio Campana, Nego Pessoa e tantos outros. 

 

O silêncio do vampiro

Indicamos também esta crônica sobre o Dalton Trevisan produzida pelo escritor Luiz Andrioli. O autor publicou também um livro sobre o contista (O silêncio do vampiro), o qual pode ser baixado gratuitamente neste link

Literatura em voz alta

O ator Hélio Barbosa interpreta por meio de uma leitura dramática um trecho selecionado da obra O Vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan. O livro faz parte do projeto Rodas de leitura: discussões sobre a masculinidade na Literatura.

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